domingo, 27 de julho de 2008

Confissão

Bênção, seu padre! E aí, é sempre assim... o desconhecido entra na minha vida, me faz mulher satisfeita e depois quer me ignorar. O que quer com isso? Eu não sei. Se eu soubesse o que se passa na cabeça dele... Ah, eu não seria tão tola. Dizer o que ele é meu ... meu amigo, meu amante, meu querido desconhecido. Meu? Acho que não. Ele é do mundo, tem vida, tem objeções. Talvez eu o agrade, talvez eu lhe dê prazer. Mas de manhã, ele levanta da cama e sai como se nada houvesse acontecido. Sai também e deixei a porta aberta, nunca se sabe o dia que terei que voltar. Voltar para os seus braços? Volta para suas mãos? Eu não terminei, nem ele terminou, nem mesmo começou de verdade... O que eu chamo de inacabado é relevante.
Seus olhos desconhecidos me domavam. Involuntariamente em seus braços, o mundo ficava estático e existíamos como únicos. Pensar no mundo... eu já não o queria. A vida estava tão cheia de nódoas, isso me dava mal estar. Eu resistia ao convencional enquanto, meu marido me esperava em casa para fazer o jantar. O marido? Só de boca mesmo, seu padre. Ele reagia como se eu fosse mais um objeto da casa.
Já o desconhecido, é quem me satisfaz. Devo contar-lhe que o conheci no ônibus. Dia desses, me sorriu e colocou um par de brincos na minha orelha. Os brincos eram borboletas rosas, elas voavam no balançar do meu andar... E a liberdade quase que compulsiva dominava esse ato me levando para longe, longe dele. Eu mal pude evitar, mas sugeri que se aproximasse e abriu a palma da mão. Ali pousou uma borboleta rosa me trazendo de volta, de volta pra ele.
E é ele, o desconhecido que me apareceu quando eu olhava a chuva cair pelo vidro da janela do ônibus. Sentou-se no banco ao meu lado, me olhou e parou no meu olhar, queria dizer algo, mas não conseguiu de imediato.
O silêncio inicial foi quebrado, com a voz entrecortada perguntou-me as horas, desculpa tão banal! Permiti que entrasse na minha vida quando respondi: É... são nove e trinta e um.
Levantou-se do banco do ônibus indo à direção da porta, subitamente retornou e disse:
_ Pode ser que nunca mais lhe veja e perca em ti meus olhos, por favor: nome e telefone!
Resisti e pensei no absurdo de dar tal liberdade para um desconhecido, mas logo me dei como envolvida, foi inevitável. O desconhecido do ônibus viu e sabia muito bem que eu trazia o meu compromisso no dedo, o que não foi empecilho para uma eventual proximidade de sua parte.
O ônibus sacolejava fazendo movimentos repetitivos nas curvas enquanto que os olhos daquele homem abriam cada botão do meu vestido ensopado, colado ao corpo por causa da chuva que peguei antes de entrar na condução.
Fechei os olhos para não lembrar, mas estava lá aqueles olhos retidos na minha retina pedindo para ficar mais uma vez, quem pode julgar isso um erro se o corpo pede e a fisionomia muda.
Não me importo com esse jeito dele, de... homem carente que nada tem, cuja identidade se ignora. Nem a sua barba me incomoda. Quando me toca a face esqueço toda a fatiga do mundo e só ele está ali, nada mais. Mas o que têm feito com isso? Se guardas os momentos com valor sentimental ou os apaga por esquecer, não sei. Porque nem da verdade eu sei, seu padre. Sei que às vezes perco a razão por querer declarações eternas.
E o ônibus, andava no primeiro encontro. Levava com as suas quatro rodas um caso de amor? Eu sei que ali nasceu um desejo insuportável, daqueles bem gostosos que costumam marcar a pele.
O estranho do ônibus é inconstante, é o meu inconstante, é ele o devaneio de muitas moças, um homem viril, lascivo capaz de trazer o sangue na boca mordida pelo beijo selvagem. Espero tê-lo entre outras viagens.
Após escutar toda a confissão, o padre saiu do confessionário e olhou bem para a mulher e disse, meio sem jeito:
_Oi.
Deparando-se com a imagem do padre, vendo que era ele o desconhecido do ônibus, a mulher caiu em prantos. E correndo pela igreja em direção da porta, rezou três ave-marias e foi pelo caminho, certa de que jamais poderia vê-lo.

Andréa de Azevedo.

2 comentários:

Web Daniel disse...

Adorei!!!
Lembra do hoje, é umadádiva, por isso se chama presente.
E ele, o desconhecido, está sempre presente e sempre estará...

P.S...Web Daniel = Daniel(Ieu)..abri esse blog...rsrs...

michelle disse...

Muito bom! Gostei muito!!!
Michelle.